Norma 99. É proibida a privação arbitrária da liberdadeVolume II, Capítulo 32, Seção L.
A prática dos Estados estipula esta regra como uma norma do direito internacional consuetudinário aplicável tanto nos conflitos armados internacionais como não internacionais. Deve-se observar que o artigo 3º comum às Convenções de Genebra, assim como os Protocolos Adicionais I e II, requer que todos os civis e pessoas fora de combate sejam tratados humanamente (ver Norma 87), de modo que a privação arbitrária da liberdade não é compatível com esta exigência.
O conceito de que a detenção não deva ser arbitrária faz parte do Direito Internacional Humanitário e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Apesar de haver diferenças entre estes dois ramos do direito internacional, ambos têm por objetivo prevenir a detenção arbitrária ao determinar os motivos para a detenção com base em necessidades, em particular, necessidades de segurança, e ao prever certas condições e procedimentos para prevenir desaparecimentos e supervisionar a continuidade da detenção.
Motivos para detenção
As normas sobre os motivos pelos quais uma pessoa pode ser privada de liberdade por uma parte de um conflito armado internacional podem ser encontradas nas quatro Convenções de Genebra:
[1]A I Convenção de Genebra regula a detenção ou retenção do pessoal sanitário e religioso.
[2]A II Convenção de Genebra regula a detenção e retenção do pessoal sanitário e religioso de navios hospitais.
[3]A III Convenção de Genebra fundamenta-se no costume de longa data de que os prisioneiros de guerra poderão ser internados pela duração das hostilidades ativas.
[4] Existem condições adicionais na III Convenção de Genebra com relação aos castigos disciplinares, investigações judiciais e repatriação de prisioneiros de guerra gravemente feridos ou enfermos.
[5] A IV Convenção de Genebra determina que um civil somente poderá ser internado ou posto em uma residência forçada se “a segurança da Potência em cujo poder essas pessoas se encontrem o torne absolutamente necessário” (artigo 42) ou, em um território ocupado por ‘motivos imperiosos de segurança” (artigo 78).
[6] No caso
Delalić, O Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia interpretou o artigo 42 de modo a permitir o internamento somente se existam “motivos graves e legítimos” para se concluir que as pessoas internadas possam seriamente prejudicar a segurança da potência detentora por meio da sabotagem ou espionagem.
[7]Os motivos para a detenção inicial ou contínua foram limitados às necessidades válidas, como evidenciado na lista acima. Por exemplo, a detenção de “inimigos estrangeiros” foi restringida na IV Convenção de Genebra para os casos “absolutamente necessários” por motivos de segurança, e a III Convenção requer a repatriação de prisioneiros de guerra gravemente feridos ou enfermos já que não há mais a probabilidade de que participem nas hostilidades contra a Potência Detentora.
Procedimentos exigidos
Além dos motivos válidos, certos procedimentos devem ser seguidos para que a privação de liberdade seja lícita. O artigo 43 da IV Convenção de Genebra prevê que qualquer pessoa internada ou posta em uma residência forçada tem o direito de que esta decisão seja reconsiderada o mais breve possível por uma corte ou órgão administrativo apropriados e, caso a mesma seja mantida, que seja revisada periodicamente, pelo menos uma vez ao ano.
[8] O artigo 78 da IV Convenção de Genebra dispõe que as decisões relativas à residência forçada ou internamento no território ocupado deverão ser tomadas de acordo com um processo regular a ser estabelecido pela potência ocupante de acordo com as disposições da Convenção. Também dispõe que essa decisão está sujeita a apelação a ser resolvida no prazo mais breve possível. Se as decisões forem mantidas, serão objetos de revisão periódica, se possível semestral, a cargo de um organismo competente instituído pela referida potência.
[9] Estes procedimentos também figuram em inúmeros manuais militares.
[10] Além disso, a III Convenção de Genebra requer o exame de prisioneiros de guerra feridos ou enfermos por uma Comissão Médica Mista para saber se eles devem ser repatriados ou enviados a países neutros.
[11]Além das disposições específicas dos artigos 43 e 78 da IV Convenção de Genebra, as Convenções de Genebra preveem a designação de Potências Protetoras como forma de tentar evitar a detenção arbitrária e os maus tratos que se seguem. As Potências Protetoras deverão ser supervisores imparciais que acompanham a implementação das Convenções para salvaguardar os interesses das partes em conflito.
[12] Em especial, uma Potência Detentora deverá informar imediatamente as Potências Protetoras, assim como o Escritório de Informações e a Agência Central de Informações sobre a captura de prisioneiros de guerra ou o internamento de civis.
[13]Além disso, o Protocolo Adicional I prevê que “qualquer pessoa detida, presa ou internada por ato relacionado com o conflito armado será informada sem demora, em um idioma que compreenda, das razões que tenham motivado essas medidas”.
[14] Esta norma figura em vários manuais militares.
[15]Refere-se como “detenção ilegal” a detenção que não esteja em conformidade com as várias normas dispostas pelas Convenções de Genebra. “Detenção ilegal” de civis é uma infração grave da IV Convenção de Genebra.
[16] A “privação ilegal da liberdade” de uma pessoa protegida pelas Convenções de Genebra é uma infração grave pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia e pelo Regulamento 2000/15 da UNAET para o Timor do Leste.
[17] Os Elementos dos Crimes do Tribunal Penal Internacional afirmam que a privação ilegal da liberdade pode ser relativa a qualquer pessoa protegida por uma das Convenções de Genebra, não somente em relação aos civis.
[18]Os manuais militares de muitos Estados proíbem a detenção ilegal.
[19] Esta proibição figura também na legislação de muitos Estados.
[20] A terminologia empregada nos manuais e na legislação varia: confinamento ilegal/ilícito, detenção ilegal/ilícita, detenção arbitrária, detenção desnecessária, prisão ou privação de liberdade contrária ao direito internacional, restrição injustificada da liberdade e priões em massa indiscriminadas. A proibição da detenção ilegal foi levantada em vários casos depois da II Guerra Mundial.
[21]Motivos para detenção
Estipula-se a proibição da privação arbitrária da liberdade em conflitos armados não internacionais pela prática dos Estados na forma de manuais militares, legislação nacional e declarações oficiais, bem como com base no Direito Internacional dos Direitos Humanos (ver
infra). Enquanto que todos os Estados possuem legislação que determinam os motivos pelos quais uma pessoa pode ser detida, encontrou-se que mais de 70 criminalizam a privação ilegal da liberdade durante os conflitos armados.
[22] A maioria da legislação aplica-se à proibição de privar ilegalmente de liberdade em conflitos armados internacionais e não internacionais.
[23] Vários manuais militares que são ou foram aplicáveis em conflitos armados não internacionais também proíbem a privação ilegal de liberdade.
[24] Como indicado acima, a terminologia utilizada nesses manuais e na legislação varia de confinamento ilegal/ilícito, detenção ilegal/ilícita a detenção arbitrária ou desnecessária.
Não foi encontrada nenhuma prática oficial contrária com relação aos conflitos armados internacionais e não internacionais. Os casos denunciados de privação ilegal de liberdade foram condenados. O Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, condenou as “detenções arbitrárias” nos conflitos na Bósnia e Herzegovina e Burundi.
[25] Do mesmo modo, a Assembleia Geral da ONU manifestou sua grande preocupação sobre as violações do Direito Internacional Humanitário e dos direitos humanos na Ex-Iugoslávia e Sudão, incluindo “detenção ilegal” e “detenção arbitrária”.
[26] A Comissão de Direitos Humanos da ONU também condenou, por meio de resoluções adotadas sem voto, as “detenções” na Ex-Iugoslávia e as “detenções arbitrárias” no Sudão.
[27]O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, a Convenção sobre os Direitos da Criança e os tratados regionais de direitos humanos reconhecem a liberdade e a segurança da pessoa e/ou preveem que ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo por motivos e em condições previamente dispostos pela lei.
[28] Estes princípios também figuram em outros instrumentos internacionais.
[29]O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, a Convenção sobre os Direitos da Criança e as Convenções Europeia e Americana de Direitos Humanos preveem que ninguém pode ser sujeito a prisão ou detenção arbitrárias.
[30] A Convenção Europeia de Direitos Humanos determina os motivos pelos quais uma pessoa poder ser privada da sua liberdade.
[31] No Comentário Geral sobre o artigo 4º Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (relativo aos estados de emergência), o Comitê de Direitos Humanos da ONU afirma que os Estados Partes não podem “em nenhuma circunstância” invocar um estado de emergência “como justificativa por violar o direito humanitário ou as normas peremptórias do direito internacional, como, por exemplo, (...) com privações arbitrárias da liberdade”.
[32] A proibição de prisão ou detenção arbitrárias figura também em outros instrumentos internacionais.
[33]A necessidade de um motivo válido para a privação de liberdade corresponde tanto ao motivo inicial da privação como à sua continuidade. A detenção que se segue além do que está disposto por lei é uma violação do princípio de legalidade e caracteriza-se como detenção arbitrária. Esta questão foi abordada pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU e a Comissão Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos em casos relativos a pessoas que continuaram detidas após sua sentença ter sido cumprida
[34] ou apesar da absolvição
[35] ou de uma ordem de soltura.
[36]Procedimentos exigidos
Desde a adoção das Convenções de Genebra, tem havido avanços significativos no Direito Internacional dos Direitos Humanos com relação aos procedimentos necessários para prevenir a privação arbitrária da liberdade. O Direito Internacional dos Direitos Humanos estipula as obrigações (i) de informar a pessoa que está sendo detida dos motivos da sua prisão; (ii) de apresentar, com a maior brevidade, perante um juiz a pessoa presa por uma acusação criminal e (iii) e de fornecer uma oportunidade à pessoa privada de liberdade de contestar a legalidade da detenção (o chamado mandado de
habeas corpus). Apesar de as obrigações (i) e (ii) não estarem listadas como não passíveis de detenção nos tratados relevantes de direitos humanos, a jurisprudência dos direitos humanos decidiu que nunca se poderá dispensá-las na sua totalidade.
[37](i) Obrigação de informar a pessoa que está sendo detida dos motivos da sua prisão. A exigência de que as pessoas presas sejam informadas imediatamente dos motivos figura no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e nas Convenções Europeia e Americana de Direitos Humanos.
[38] Enquanto que a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos não prevê explicitamente esse direito, a Comissão Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos determina que seja parte integrante do direito ao julgamento justo.
[39] Também está disposto no Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, adotado pela Assembleia Geral da ONU sem votação.
[40] No Comentário Geral sobre o artigo 9º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o Comitê dos Direitos Humanos da ONU susteve que “se a chamada detenção preventiva for empregada, por motivos de segurança pública, deve ser controlada por estas mesmas disposições, ou seja (...) deve ser fornecida a informação dos motivos”.
[41] Esta norma faz parte do direito interno da maioria, dos Estados, se não de todos.
[42] Foi incluída nos acordos fechados entre as partes dos conflitos da Ex-Iugoslávia.
[43] (ii) Obrigação de apresentar, com a maior brevidade, perante um juiz a pessoa presa por acusação criminal. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e as Convenções Europeia e Americana de Direitos Humanos requer a apresentação, com a maior brevidade, da pessoa que é presa ou detida perante um juiz ou autoridade competente para exercer o poder judicial.
[44] Enquanto que a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos não prevê explicitamente esse direito, a Comissão Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos determina que seja parte integrante do direito ao julgamento justo.
[45] Também está disposto no Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão e a Declaração sobre Desaparecimento Forçado da ONU, adotados pela Assembleia Geral da ONU sem votação.
[46] Esta norma faz parte do direito interno da maioria, dos Estados, se não de todos.
[47] No Comentário Geral sobre o artigo 9º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o Comitê dos Direitos Humanos da ONU declarou que uma apresentação com a maior brevidade significa que “a demora não pode exceder alguns dias”.
[48] Já existe jurisprudência significativa nas cortes regionais de direitos humanos sobre a aplicação deste princípio durante os estados de emergência.
[49] (iii) Obrigação de fornecer uma oportunidade à pessoa privada de liberdade de contestar a legalidade da detenção. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos prevê o direito de ter a legalidade da detenção revista por um tribunal e a soltura decretada no caso de não ser considerada legal (o chamado mandado de
habeas corpus).
[50] Também figura na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e no Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, adotado pela Assembleia Geral da ONU sem votação.
[51] Esta norma é parte do direito interno da maioria dos Estados, se não de todos.
[52] Foi incluída no Acordo Abrangente sobre o Respeito pelos Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário nas Filipinas.
[53] No Comentário Geral sobre o artigo 4º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (estados de emergência), o Comitê de Direitos Humanos da ONU afirmou que “de modo a proteger os direitos que não podem ser suspensos, o direito de iniciar um processo perante um tribunal, para decidir sem demora sobre a legalidade da detenção, não deve ser reduzido pela decisão de um Estado Parte de suspender o Pacto”.
[54] Na opinião consultiva nos casos
Habeas Corpus e
Judicial Guarantees, a Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu, em 1987, que o mandado de
habeas corpus está entre os recursos judiciais que são “essenciais” para a proteção de vários direitos cuja suspensão é proibida pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, não podendo, por conseguinte, ser suspenso.
[55]A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sustém que o processo para decidir sobre a legalidade da detenção deve ser levado perante um tribunal que seja independente da autoridade que ordenou a detenção, em particular nas situações de emergência em que ocorrem detenções administrativas.
[56] A Corte Europeia de Direitos Humanos destacou, de modo similar, a exigência de que a revisão da legalidade da detenção seja realizada por um órgão independente do executivo.
[57]Existe, além do mais, ampla prática com relação ao direito das pessoas privadas de liberdade terem acesso a um advogado.
[58] O Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, adotado pela Assembleia Geral da ONU sem votação, também determina “uma pessoa detida deverá ter direito à assistência de um advogado”.
[59] Em particular, a oportunidade de se contestar a legalidade de uma detenção requer a assistência de um advogado para ser eficaz.
Deve-se observar, no entanto, que todas as pessoas privadas de liberdade por motivos relacionados a um conflito armado não internacional deverão ter a oportunidade de contestar a legalidade da detenção, salvo se o governo do Estado afetado pelo conflito armado não internacional reivindicou para si os direitos de beligerante. Neste caso os “combatentes” inimigos capturados deverão ser beneficiados pelo mesmo tratamento outorgado aos prisioneiros de guerra em conflitos armados internacionais e os civis detidos pelo mesmo tratamento outorgado às pessoas civis protegidas pela IV Convenção de Genebra em conflitos armados internacionais.